
Mulher asiática vestida com quimono a segurar um bebé — uma representação disfarçada de Maria e Jesus
Nas ilhas rurais de Nagasaki, um punhado de crentes pratica uma versão do cristianismo que tem ligações diretas a uma época de samurais, xoguns e missionários e crentes martirizados — que ainda recitam o Orasho, baseado nos textos que os missionários portugueses levaram para o Japão.
Nas remotas ilhas da região de Nagasaki, uma forma centenária de cristianismo está silenciosamente a desaparecer.
Os Kakure Kirishitan, ou Cristãos Ocultos, que preservaram a sua fé durante 250 anos de brutal perseguição, enfrentam agora um inimigo implacável, que não conseguem superar: o próprio tempo, conta a ABC News.
“Neste momento, receio que seremos os últimos”, diz Masatsugu Tanimoto, de 68 anos, um dos poucos praticantes que ainda consegue recitar as orações em latim que os seus antepassados aprenderam há 400 anos. “É triste ver esta tradição terminar com a nossa geração”.
O cristianismo floresceu inicialmente no Japão do século XVI, quando missionários jesuítas converteram centenas de milhares de pessoas, particularmente na ilha de Kyushu, onde estabeleceram portos comerciais em Nagasaki.
Mas os governantes do xogunato japonês rapidamente viram a religião como uma ameaça ao seu poder, lançando uma violenta repressão no início dos anos 1600.
Confrontados com tortura e execução, os cristãos japoneses passaram à clandestinidade. Desenvolveram métodos engenhosos para disfarçar a sua fé, venerando o que chamavam de “Deus do Armário” com ícones que pareciam budistas para os forasteiros, mas que continham significado cristão secreto.
Na ilha de Ikitsuki, os Cristãos Ocultos ainda se reúnem em pequenas salas discretas onde pinturas em pergaminho mostram uma mulher asiática vestida com quimono a segurar um bebé — uma representação disfarçada de Maria e Jesus.
Outro pergaminho retrata um homem com um quimono coberto de camélias, simbolizando o martírio de João Batista.
Estas comunidades também preservam garrafas de cerâmica com água benta de Nakaenoshima, uma ilha onde os Cristãos Ocultos foram martirizados na década de 1620. Nada nestes objetos conecta-os abertamente ao cristianismo — precisamente esse é o objetivo.
Quando o Japão oficialmente levantou a proibição do cristianismo em 1873, muitos Cristãos Ocultos converteram-se ao catolicismo. Outros, no entanto, optaram por manter as suas práticas distintivas — uma mistura única de catolicismo, budismo e xintoísmo que evoluiu durante séculos de isolamento.
“Os Cristãos Ocultos têm muito orgulho naquilo em que eles e os seus antepassados acreditaram durante centenas de anos, mesmo arriscando as suas vidas”, explica Em Mase-Hasegawa, professora de estudos religiosos na Universidade J.F. Oberlin em Tóquio.
Tanimoto diz que os seus antepassados rejeitaram o catolicismo convencional porque tornar-se católico significava abandonar os elementos budistas e xintoístas que se tinham tornado parte integrante da sua fé.
“Não sou cristão“, esclarece. “As nossas orações pedem aos nossos antepassados que nos protejam. Não estamos a fazer isto para venerar Jesus ou Maria… A nossa responsabilidade é seguir fielmente a forma como os nossos antepassados praticavam”.
Antigas orações num mundo moderno
Central no culto dos Cristãos Ocultos é a recitação do Orasho — orações derivadas de textos latinos ou portugueses trazidos pelos missionários do século XVI. Estes cânticos, uma mistura de japonês arcaico e latim, foram preservados através da tradição oral e cópias manuscritas passadas de geração em geração.
Recentemente, em Ikitsuki, três idosos realizaram uma rara cerimónia de Orasho. Vestidos com quimonos escuros formais, fizeram solenemente o sinal da cruz antes de iniciarem as suas orações — um ritual praticamente inalterado há quatro séculos.
Tanimoto é o mais jovem de apenas quatro homens na sua comunidade que conseguem recitar estas orações. Aprendeu-as com o seu tio há 40 anos para poder rezar ao Deus do Armário que a sua família tem guardado por gerações.
Embora não compreenda as partes em latim, memorizou-as completamente, seguindo livros de orações manuscritos que o seu avô criou com pincel e tinta.
O declínio do cristianismo oculto acompanha a transição do Japão de sociedade agrícola para uma nação moderna e industrializada. Dados governamentais mostram que existiam cerca de 30.000 Cristãos Ocultos em Nagasaki na década de 1940, incluindo cerca de 10.000 em Ikitsuki.
Atualmente, as estimativas sugerem que restam menos de 100 na ilha, tendo o último ritual de batismo confirmado ocorrido em 1994.
“Numa sociedade de crescente individualismo, é difícil manter o cristianismo oculto como é”, diz Shigeo Nakazono, diretor de um museu folclórico local que tem pesquisado os Cristãos Ocultos há 30 anos.
Nakazono aponta para a fraqueza estrutural da religião — a ausência de líderes religiosos profissionais que poderiam adaptar a fé aos tempos em mudança.
À medida que o cristianismo oculto enfrenta a extinção, estão em curso esforços para preservar o seu legado. Nakazono começou a colecionar artefactos e a arquivar entrevistas em vídeo com praticantes.
Em 2018, a UNESCO reconheceu os locais dos Cristãos Ocultos na região de Nagasaki como Património Mundial, reconhecendo a sua importância cultural.
Para os praticantes restantes, a esperança reside em passar as suas tradições para pelo menos mais uma geração. “O cristianismo oculto irá extinguir-se mais cedo ou mais tarde, e isso é inevitável”, reconhece Tanimoto, “mas espero que continue pelo menos na minha família. É a minha pequena réstia de esperança“.